Separação
Desafiou o vento tentando acender um cigarro. Parecia divertir-se com essa luta entre o fogo e o ar, que insistia em apagar a chama e embaraçar seus cabelos. Finalmente a chama venceu e Anna tragou com a satisfação de quem reencontra um antigo amigo após muitos anos de separação.
Caminhava a passadas largas, sem pressa, sem destino. Observou lugares pelos quais passou diariamente durante 15 anos, mas nunca tinha visto. Sentia a fumaça entrando pelos pulmões e se alastrando pelo resto do corpo, saboreava cada passo daquele ritual.
Quinze anos. Quinze anos anestesiados, atropelados por desejos e prioridades que não eram seus. Quinze anos.
De repente seu corpo foi tomado por uma onda incontrolável de alegria, o riso contido desde sempre explodiu sem pedir licença. Gargalhava, lágrimas escorrendo pelos cantos dos olhos. As pessoas que a cruzavam na rua, rindo como uma louca, não podiam deixar de acompanhá-la na risada contagiante.
Era que como se voltasse a ser adolescente e a ter infinitas possibilidades. Era exatamente isso, a sensação de que poderia fazer tudo o que quisesse, poderia se arrepender, fazer de novo. Estava livre! Livre! Não sabia qual seria o próximo passo, não tinha nenhum plano para o mês que vem, sequer para o dia seguinte. E ao invés de se sentir aterrorizada, sentiu-se estimulada.
Mexeu na sua bolsa mais uma vez, tirou a carteira de identidade. Mal pôde se reconhecer na foto. Parecia tão mais velha. Passou os dedos sobre a fotografia, como se quisesse limpar a velhice, os anos de sofrimento e intolerância. Achou seus olhos tristes e teve certeza de que naquele momento eles brilhavam como nunca. Deu o último trago no cigarro. Descalçou as sandálias, dobrou cuidadosamente a barra da calça de sarja e sentiu a areia massageando seus pés. “Vou pintar as unhas de vermelho”, pensou. “E vou tingir os cabelos de loiro, ou vermelho”, completou. Não pôde conter o riso.
Então sentiu a água gelada. Abriu os braços, como se abraçasse o mar. Respirou fundo, sentiu a brisa no seu rosto, quase um afago. As lágrimas ainda escorriam, mistura de felicidade e tristeza. Quanto tempo perdido. Olhou mais uma vez para o documento, tentou rasgá-lo, mas o plástico atrapalhou. Amassou o quanto conseguiu e o arremessou ao mar. “Adeus! Até nunca mais”, gritou.
Virou-se e levantou os olhos para os prédios à beira-mar. Fixou o olhar em um deles, contou mentalmente os andares e parou no sétimo. Lembrou-se da música : “Love of my life cant you see, bring it back bring it back, don’t take it away from me, because you don’t know what it means to me…”. Suspirou, uma ponta de chateação. Ainda assim o sentimento que prevalecia era de felicidade, quase um alívio. Decidiu mergulhar.
Lá de cima, no sétimo andar, um homem a observava da sacada, ao fundo Freddie Mercury soltava os pulmões. Ele segurava um copo duplo de whisky e chorava compulsivamente. Destroçado, só agora ele sentia. E sentia muito.